Nós

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sábado, 19 de junho de 2010

Um grito sem Voz - 25 de Julho de 2010


Estou a tentar manter a minha sanidade mental. Tipo bater com os pés onde não se tem pé na água para não afundar.

Ontem foi daqueles dias da vida que são mesmo difíceis. Não vou entrar em pormenores porque implica uma organização e pessoas que muito prezo.

Hoje houve consulta lá no IPO. As plaquetas estão a 30 (muito bom mas já estiveram antes a 32 e desceram depois para 10) e os reticulócitos a 70 (aqui sim, um dado mais seguro). A hemoglobina estava a 6.5 e o Jorge teve de fazer uma transfusão.


O Jorge disse ao médico que não estava a dormir bem (pudera, também
com o que passámos nos últimos dias com uma pessoa maluca – não
justifica tudo - ou infelizmente, má) e o médico disse que lhe ía
passar um medicamento, mais propriamente uma benzodiazepina. Pedi se
podia receitar Metamidol, que eu tomo em último caso e que
não tenho, ao que ele respondeu secamente “Não é
doente do IPO”. Gelei e pensei que ainda bem que não sou doente do
IPO mas fiquei tão, tão magoada. Que humanidade! Ser doente do IPO deve ser um extremo privilégio.

Digo que o Jorge tem mantido temperaturas de 37.2; não é febre, é a resposta. Pois, mas também não é a temperatura normal dele. À noite está com 37.6 de temperatura. A minha boca não se abre. Deve ser ele a falar com os médicos.



Sem entrar num discurso corporativista, penso que o facto de eu ser enfermeira só
piora a situação. O que estará por detrás disto?


Bem bom que ao doente se faz o essencial, espero eu, num sistema paternalista
de saber o que é melhor para ele mas a família é tratada como lixo.
Dei comigo a pensar nas esposas de outros doentes e a lembrar as
suas expressões de dor, dúvida e sofrimento e como são invisíveis
para os médicos. Falam para o doente e nem olham para nós. Tenho que
exaltar, no meu caso, a excepção feita ao Dr. Sérgio e à Dra. Marta
que até nos cumprimentam nos corredores. São internos e eu faço
votos que nunca mudem, pois eles sim, são humanos. Quero acreditar
que fazem parte de uma nova geração de médicos que será diferente.


O Jorge também ficou chocado com o que aconteceu.


Não prevejo melhores dias neste aspecto e já disse ao Jorge que ele
escreva tudo o que quer dizer aos médicos pois já vi que eles
detestam que eu fale e o Jorge detesta falar.


Sei que não sou eu que vou mudar os “todo-poderosos” mas também não
me vou calar. Não só escreverei sobre toda esta experiência como aproveitarei todas as oportunidades para relatar esta experiência. Até agora contive-me por ser
profissional de saúde. Infelizmente perante certas situações lamento sê-lo. Ou
pelo menos neste país. Tivesse eu menos 10 anos e enveredaria por
outra profissão ou teria ficado nos Estados Unidos, aceitando a
proposta que e fizeram em 1998. Como estou arrependida!


O Jorge entrou para a transfusão no serviço de hemoterapia onde se fazem as
transfusões dos doentes ambulatórios e eu fiquei cá fora, a magicar
nisto tudo. Achei melhor ir dar uma volta pois não tinha nada com
que me entreter. Mas ele tinha a chave do carro. Ele perguntou à
enfermeira se eu podia entrar para ir buscar a chave. Ela disse que
sim a ele e para mim, com muita “simpatia” – Mas sai logo! E eu –
Claro que sim, só vou buscar a chave.


Fui para o carro, era meio-dia e pouco. Fartei-me de chorar.
Senti-me um cão sarnento e abandonado. Pior é que ir para os Açores
dá-me ainda mais insegurança, pois ao contrário de qualquer doente
do continente que se mete num carro ou comboio e vem ao IPO, lá
ficamos dependentes da “boa vontade” dos senhores doutores médicos
e da sua “influência”. Ó vergonha de país!

E pensei em todas as esposas (e possivelmente nos esposos) de quem
anda nestes hospitais (nos privados são tratados a
pão-de-ló) e que cuidamos, somos motoristas, cozinheiras,
enfermeiras, companheiras, engomadeiras, criadas mas somos
invisíveis. Somos Gente Sem Voz.


O Jorge saíu às 14 horas; tinham-lhe dado caldo verde. Eu estava
cheia de fome. Mas vim para casa deitar-me, que a dor era maior do
que a fome e perto do doente há que mostrar cara alegre – também
somos actrizes – ou melhor actores mímicos, porque não temos voz.

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