Nós

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quarta-feira, 16 de junho de 2010

A Pré-Saga


Tudo começou em Novembro de 2007.
Eu precisava de emagrecer (ui! e preciso) e a par do plano alimentar do nutricionista, comecei a fazer natação. Como sempre, o meu marido acompanhava-me.
Estranhamente comecei a reparar que dava 2 ou 3 braçadas e parava, cansadíssimo.
Juntando isto a sentar-se no sofá e adormecer de imediato (aos 44 anos é comum a muita gente) e apresentar uma respiração muito acelerada, comecei a não gostar. No ano em que casámos, 2003, teve uma pneumonia muito grave e receei que tivesse ficado com sequelas pulmonares ou mesmo cardíacas. Falei-lhe em ir ao médico. Nunca quis. Em Dezembro de 2007, não lhe falei. Marquei e disse "tens consulta dia tal". Ponto final.
Foi ao médico, função respiratória normal, função cardíaca normal. Hemograma (sem plaquetas) com Hb de 12 (abaixo do normal num homem) e macrocitose (aumento do tamanho dos glóbulos vermelhos). O médico ao ver as análises, pede novo hemograma, agora com plaquetas e doseamento da ferritina. Bem, eu não sou medico - sou enfermeira e, daí, professora de enfermagem, com muita honra - mas sabia que macrocitose não tem a ver com diminuição de Ferritina. E, nas análises já recebidas em Janeiro de 2008, estava lá: 75 plaquetas (metade do normal) e Ferritina muito aumentada (agora não recordo quanto). Para minha surpresa, o médico não reparou nos valores das plaquetas. Saí do consultório com a cabeça a andar à roda e pensei "Para onde vou?" Infelizmente o meu médico não se encontrava na ilha e fomos a outro/a. Indica refazer análises e depois de o examinar, quis falar comigo em particular. Disse-me que não gostava do que encontrara porque o Jorge tinha o baço e o fígado aumentados de volume (hepatoesplenomegália). Estes dois achados nunca foram confirmados posteriormente. Ía ausentar-se durante 2 semanas (deve ser época de férias médicas) e quando voltasse "ía-se estudar melhor o caso".
Um ano antes eu tinha recebido o diagnóstico de Lúpus Discóide e estava a ser seguida por um professor doutor em Lisboa. Telefonei-lhe para lhe dizer o que estava a acontecer com o Jorge. O professor disse-me: "Paula, prepare-se; penso que o seu marido tenha uma doença hematológica tipo síndrome mielodisplásico ou leucemia e quero que estejam aqui o mais rapidamente possível." O mais rápido possível foi o dia seguinte. Confirmada a disponibilidade de voo (viver no paraíso que é os Açores tem o seu preço!) e comunicada a situação aos meus superiores hierárquicos, estávamos a caminho de Lisboa no voo da noite. Um aparte para dizer que o meu filho mais novo, então em semana de exames decidiu: "Mãe, não vais passar por isto sozinha. Eu vou contigo." No dia a seguir estávamos no Hospital onde o professor trabalha. Entregou-nos à equipa, fomos humanamente muito bem atendidos e, seguram-se logo análises de sangue periférico sendo marcado para os dois dias seguintes medulograma, RX, TAC abdominal e torácico. Então o professor chamou-nos a um corredor (o meu filho e duas amigas que tinham vindo ter connosco estavam na sala de espera) e disse para o Jorge: "Senhor Espada, sabe porque veio d repente para Lisboa?" O Jorge não sabia (eu não lhe disse o que o médico me dissera ao telefone). "Está aqui, porque há algo errado com o seu sangue. Possivelmente é uma doença séria, tipo síndrome mielodisplásico ou leucemia" Nunca o Jorge ouvira o palavrão "sindrome mielodisplásico". E garanto que eu (sou de obstetrícia) também não, até ao dia anterior. "E isso trata-se?" - perguntou o Jorge. "Sim - declarou o professor - há tratamento." "Então eu vou tratar-me e vou curar-me" declarou o Jorge. Viemos embora. A Nany (Deus a abençoe) agarrou no braço do Jorge e andou com ele para a frente deixando-me para trás com a Ana Parece e o meu filho. Eles deram-me as maiores palavras de apoio. Não me lembro de nenhuma. E a Nany desapareceu com o meu marido - felizmente já não era ciumenta.
No dia seguinte voltámos para o medulograma e enquanto esperávamos pela sala, uma das médicas mais humanas e queridas que conheci até hoje, comunicava-nos que pelos resultados do sangue periférico não parecia ser uma leucemia ou um sindrome mielodisplásico. Teria de se pensar num linfoma. "Penso que é melhor" disse com os meus botões.
O Jorge entrou, foi colocado em posição (se bem me lembro, porque o que recordo agora é de vê-lo em decúbito ventral - de barriga para baixo) e rodeado por alunos de medicina. Deixaram-me ficar na sala. Não me aproximei, pois gente demais já havia. Mas via a cara do Jorge. Eis quando acontece algo, os alunos dão todos um salto para trás e a médica que estava a fazer a punção diz "Ele está a fazer uma convulsão". Despi imediatamente o casaco e cheguei-me à frente. O Jorge entretanto recuperara os sentidos, olhamos à volta e não havia um soro, um acesso a oxigénio e até o aparelho para avaliação da tensão arterial teve de vir de outra sala. Ficou deitado para recuperar... e sem colheita para estudo. Passado cerca de 1 hora a médica disse que podia vir embora mas voltava no outro dia para nova tentativa.
Assim foi. No dia seguinte conseguiu-se a amostra - que ficaria pronto daí a 1 semana, se bem me lembro. No dia a seguir fez então RX e TAC do Torax - tudo normal e TAC Abdominal - tudo normal.
Quando recebemos os resultados do medulograma foi-nos referido que não se sabia o que o Jorge tinha - não havia indícios de leucemia (uau! muito bom), de linfoma (muito bom!!!) e possivelmente não de síndrome mielodisplásico. Foi indicada pela terceira vez um medulograma e mais análises de sangue periférico. Assim foi.
Dois dias depois recebo um telefonema da tão humana médica, muito atrapalhada, pedindo desculpa, mas que o sangue e a medula colhida tinham desaparecido. Fiquei aparvalhada. Literalmente. Entretanto nunca mais vira o professor.
Com os devidos respeitos, disse à sra. dra. que gostaria de ouvir outra opinião. Imediatamente a sra. disse que me ía fornecer uma cópia dos exames. E dei comigo com eles na mão, a um quarto para o meio-dia da segunda-feira de Carnaval. "Para onde me viro?" perguntava-me. Recordei-me do Dr. Olim. médico que fora da Força Aérea e que eu conhecia da B.A.4 onde vivi durante 26 anos até ir para a ilha de São Miguel. Um amigo, coronel da Força Aérea tinha o contacto dele. Telefonei-lhe e imediatamente o Dr. Olim disse que fossemos ter com ele ao seu serviço. Fomos muitíssimo bem recebidos, de sala, café e bolinhos, mesmo. E com a sua simpatia e humanidade que sempre lhe foi característico, analisou os exames e disse "Os indícios que vejo nisto tudo é de uma doença de insuficiência da medula óssea." E explicou referindo-se a um dado até então tido em pouca conta: um "quisto" no fígado, que possivelmente não era qualquer quisto mas uma zona de hematopoiese extra medular (o sangue forma-se, essencialmente, na medula óssea - a parte esponjosa dentro dos ossos - e quando esta falha, o organismo tenta recompensar por hematopoiese - formação do sangue - fora daí). Inclinou-se para algo como "fibrose da medula óssea" e pela primeira vez ouvi falar na possibilidade de um transplante de medula óssea. Admirou-se do Hospital para onde tínhamos ido por não estar vocacionado para doenças hematológicas e tentou imediatamente entrar em contacto com o IPO de Lisboa. Segunda-feira de Carnaval à tarde; não conseguiu falar com ninguém. Tentou o Hospital de Santa Maria e aí contactou uma médica que se comprometeu a consultar o Jorge na quinta-feira seguinte. A expectativa não foi complicada... nada sabíamos dessas doenças de insuficiência de medula óssea e muito menos dos complicados mecanismos de compatibilidade de medula. O Jorge é filho único, portanto, ter-se-ía de recorrer ao Banco Mundial. Ou eu engravidar, pensei com a maior das forças. Idéia que só em Maio me seria esclarecida no IPO do Porto como não sendo possível - os filhos não têm compatibilidade adequada com os progenitores pois são "metade de cada um". Na quinta-feira tivemos a consulta e a médica, já com uma certa idade (o que me deu segurança pela possível experiência) era simpática. Mas não permitiu que eu assistisse ao medulograma e biópsia de osso. Era a primeira vez que o Jorge fazia esta biópsia. Assim que acabou uma enfermeira veio chamar-me pois ele "desmaiara". Quando entrei estava tão pálido e gelado que só me apeteceu chorar. Mas já aprendera a rir, ou pelo menos sorrir na frente dele. Passados uns largos minutos, pudemos vir embora. Os resultados estariam prontos na quinta-feira seguinte. E na segunda-feira seguinte recebo um telefonema para o Jorge ir repetir o medulograma. Passei-me. Cheguei lá e quis saber o que acontecera para ele repetir. Pela resposta percebi que a medula dele tinha desaparecido de novo. Enquanto ele fazia o 4º medulogarama (de novo não me permitiram assistir) eu pensava que fenómeno é este que se passava em que a medula dos doentes desaparece... duas vezes em dois hospitais ao mesmo doente é demais! O Jorge saíu bem. Tinha sido feito no esterno e não na crista ilíaca como todos os outros e afirmava que não lhe custara.
Daí a uma semana fomos saber os resultados. Não estavam prontos mas a médica telefonou para o laboratório. Eu expliquei que tinha mesmo de regressar aos Açores. Ele foi encaminhado para a médica assistente com indicação de "sindrome mielodisplásico".
Chegada a Ponta Delgada procurei a médica que ficou com o relatório e o encaminharia para a hematologia.
3 semanas depois o Jorge não tinha sido chamado. Contactei a chefe do serviço de hematologia e para nossa admiração (minha e dela), nunca chegara nenhum pedido de consulta para o Jorge. O que equivalia a que o relatório do Hospital de Santa Maria tinha desaparecido. Neste momento, nem a propósito vejo na RTP2 uma exposição "Tudo o que é sólido dissolve-se no ar", no museu Joe Berardo. Será que o senhor compreendeu o que aconteceu as amostras de medula óssea e ao relatório do meu marido???
Mas imediatamente o Jorge foi consultado não por esta médica mas pela colega que, como não havia o referido relatório me perguntou se eu tinha possibilidade de voltar a falar com a médica do Hospital de santa Maria. Estávamos em fim de Março. Consegui falar com a referida Médica do Hospital de Santa Maria em Lisboa que me referiu que iria reencaminhar uma cópia mas que naquele momento, depois de receber os resultados (que não tínhamos trazido por termos de voltar para os Açores) não se podia dizer que o Jorge tivesse síndrome mielodisplásico. "Outra coisa qualquer que quando vier de férias [Agosto] veremos o que é".
Na consulta de Abril (e todos os meses o Jorge perdia cerca de 10 [mil] plaquetas) a médica decidiu que ele teria de ser avaliado num IPO. O seu contacto é com o Porto mas atendendo a que o Jorge é de Lisboa, se preferíssemos, entraria em contacto com Lisboa mas poderia levar mais algum tempo. Nessa altura preferimos Lisboa. Depois, falando com colegas fui-me apercebendo que no Porto as referências eram muito boas – recorde-se que nesse ano foi considerado o melhor serviço para tratamento de doenças hematológicas no país. Telefonei à sua médica em Ponta Delgada e disse que iríamos para o Porto.
Ao fim de 3 semanas o seu processo estava pronto para aí chegarmos.
Entretanto, eu já me inscrevera no AA&MDS International Organization e respectivo fórum. E na troca de impressões (abençoada internet!) pensei uma ou duas vezes “se calhar o Jorge tem anemia aplástica” mas retirava daí imediatamente o pensamento. Quando dei hematologia no meu curso de base, a anemia aplásica tinha duas possibilidades: transplante de medula ou morte. E eu não quis pensar nisso.
A consulta no IPO Porto foi a 31 de Maio de 2008. Levámos todos os exames e a carta com indicação de ser o referido síndrome mielodisplásico. Ao analisar toda a informação, olhando para os resultados dos medulogramas existentes o médico disse: “Sr. Espada, o que lhe disseram que tem?” “Síndrome mielodisplásico” “Acho que não. Vamos ter de repetir medulograma e biopsia de osso mas penso que temos aqui uma aplasia medular.” Não estava muito familiarizada com o termo e então foi-me explicado que é sinónimo de anemia aplástica. Gelei. Completamente. E o meu querido marido gelou por saber que teria de ser submetido a novo tormento. Mas tinha de ser.
Pedi se podia ficar com o Jorge. Não houve qualquer objecção.
Fiquei do seu lado anterior, à frente, enquanto ele estava deitado de lado para a colheita ser na crista ilíaca. O Jorge agarrava-se com enorme força à mesa do exame. Orientei-o para me dar as mãos, relaxar respirando fundo e não se contrair. Isto e a habilidade do médico – são unânimes em dizer que tem umas mãos magníficas para o exame – fez com que o Jorge percebesse que tinha acabado sem sequer sentir.
Foi-nos explicado que a equipa reuniria para tomar uma decisão mas se a previsão do médico estivesse certa, teria de ser internado. Uma vez mais nos foi colocado à consideração se queríamos ir para Lisboa. Depois de ver o que estava a acontecer no IPO Porto, nem pensar. Não sabia onde ía ficar. Só sabia que o Jorge seria tratado no Porto. A consulta seria a 12 de Junho. Telefonei para a Assistente social a dizer que íamos regressar aos Açores quando ela nos explicou que não o fizéssemos ou tínhamos de vir depois por nossa conta porque tem de haver um período entre cada deslocação para ser suportado pela segurança social.
Fui para casa com o coração pequenino. Muda. Anemia Aplástica. As possibilidades eram muito poucas. Mas fui à AA&MDS International Organization e fiquei aliviadíssima. Nos últimos 20 anos havia tratamento com qualidade de vida razoável e sobrevivência razoável para os doentes.
Um grande alívio. “Que seja” desejei depois de tudo o que aprendi.
No dia 11 de Junho recebemos o telefonema da enfermeira Virgínia do Piso 5. O Jorge seria internado nesse mesmo dia (afinal passou depois para o dia seguinte por ter entrado um doente com uma situação muito grave).
E no dia 12 de Junho de 2008, foi internado no Piso 5.
Começa A Nossa Saga.

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